Manhã de domingo. O relógio Cuco pendurado em uma das paredes da sala marcava 10:30 horas. A senhora Rosa, acompanhada da visita, Laura 22 anos, vizinha de rua, atravessa a sala e, na porta da varanda, a senhora diz ao esposo que Laura, vizinha do 25, deseja conversar com ele. Consentindo que se aproximasse, Laura o cumprimenta e ele aponta a cadeira para que se assentasse. – Um trabalho para a faculdade que a trouxe aqui. Disse-me durante a nossa breve conversa no bar.− conversa o anfitrião. –… Por que o senhor não é um policial agitado? − pergunta Laura. Com o inesperado questionamento, o senhor Guedes esboça um sorriso, medita e responde: – Há policiais cujos perfis se assemelham aos de certos escritores, imaginam que podem mudar o mundo. – O senhor não? – Entendo ser impossível. – Prefere compreender? – Parece-me ficar mais distante de um infarto. Laura confessa que havia gostado da narrativa que fizera no bar. – Sobre o marginal Mário. – Entendi que vocês, policiais, tinham admiração pelo bandido. O delinquente preservava sobre a estante, contendo livros de apurada leitura, duas molduras vazias ladeadas. – Alguns de nós tinham admiração por ele, sim. – Um marginal excêntrico? – Para se analisar. – Lenda ou fato? – Lenda ou fato… Quando fatos envolvem complexidade, no enredo, transformam-se em lendas. Haveria espiritualidade em um descuidista? – … Escreverei uma tese sobre o comportamento humano. – diz Laura. O anfitrião dosa cerveja no copo, meditando... – A rua, – diz ele – assemelha a uma cidade, a um país e até mesmo ao mundo. A única diferença é que os donos dos cotidianos vivem próximos uns dos outros. Posicionados como nós estamos, podemos observar toda a extensão de nossa comprida e arborizada rua, ladeada de residências… O que o trabalho da faculdade requer? – Uma história. –… Falarei sobre a falecida senhora Arilda… Encontrava-me exatamente aqui onde estou agora. De férias e os filhos no colégio, para onde iria? Dava voltas no quarteirão, visitava o nosso bar que, na época, era uma portinha e, à tarde tirava um cochilo. À noite, sem sono, trazia para cá um livro, uma garrafa de café e cigarros. Computador e celular eram privilégios de poucos. Então, certa noite, por volta das 1:30 horas da madrugada, avistei uma senhora de cuidada aparência cruzar a primeira transversal. Cruzou da direita para a esquerda. Normal? Não tão normal, mas normal. O fato se repetiu por três consecutivas madrugadas. Curioso, falei para minha esposa que, caso acordasse na madrugada do dia seguinte e não me encontrasse, não se preocupasse, bisbilhotaria o trajeto de uma senhora. Comentei o que estava acontecendo. Assim, às 1:30 horas da madrugada do dia seguinte, aguardei-a passar. Ofertei-lhe distância e passei a segui-la. Atravessando ruas e avenidas desertas, chegamos a Tinhares. Atravessou a rua e adentrou uma ruína. Resultado: na espreita fiquei, nada aconteceu e amanheceu. A sirene da fábrica de biscoitos Irandi soou. Momentos depois, a senhora deixa a ruína. Ao desaparecer de vista, adentrei a ruína e passei a procurar qualquer coisa que justificasse aquilo. Ao acessar os escombros de um dormitório, havia no canto da parede um imundo colchão de solteiro, um encardido travesseiro e um lastimável cobertor dobrado. Havia dormido com alguém? Como? Um colchão estreito e um travesseiro. Nas laterais e aos fundos do terreno, havia muros altos. Além dela, ninguém havia acessado a ruína e, além de mim, não havia mais ninguém. Perdi de segui-la de volta. – Qual fora o motivo da curiosidade? – Ainda se fosse nos dias atuais, seria motivo de curiosidade, o quarteirão era praticamente desabitado. Cheguei a pensar que fosse fantasma. – Jura?! – Uma senhora, às 1:30 horas da madrugada, surgir do nada? Às 5:30 horas do dia seguinte a espreitava. Queria acompanhar o trajeto de volta. A sirene da fábrica de biscoitos soou e ela deixou a ruína. A cidade despertava a seguir com maior cuidado, pois, oposto ao trajeto de ida, voltava-se no momento de atravessar as ruas já movimentadas. Nesse trajeto, cruzamos a segunda transversal da esquerda para a direita e seguimos. Curiosidade findada no conjunto de prédios Duble: acessou o Edifício Morgane. –… – Intrigado, um senhor cujo filho… Esse senhor me reconheceu. Agradeceu-me por algum passado e passamos a conversar. Atingindo o que desejava, contou-me que a senhora se chamava Arilda. Ouvia dizer que dormia em escombros permutando periodicamente. Dona de temperamento explosivo. Havia expulsado o marido e os filhos ainda menores de casa. Se os vizinhos não queriam aproximação com ela, os empregados pior. Uma cabeleireira de mão cheia. Porém, ainda segundo o que se ouvia dizer, nunca trocou uma única palavra com os clientes. Se muito: sim, não. Posso, não posso. O que teria acontecido com ela para optar por dormir em escombros? Anos depois, a vi na varanda do número 37, tomava sol. Certo dia, no bar, conversando com Jerônimo, teci algo para que dissesse quem era aquela senhora. Respondeu-me que era sua avó. A artrose a impedia de morar sozinha. Perguntei se viviam em harmonia. Sorriu balançando a cabeça. – … – Mário conservava sobre a estante duas molduras vazias ladeadas. Representavam seus pais que não tivera oportunidade de conhecê-los, segundo nos dizia. Sempre de bem com a vida, dizia-nos que ele era prova viva do surgimento espontâneo. Haveria espiritualidade? Não passou de um mero descuidista. Mas tinha capacidade para praticar grandes assaltos. Circulava onde desejasse sem ser percebido. Entraria e sairia daqui nesse momento sem ser visto. Sua última façanha: adentrou as chamas de um incêndio criminoso para resgatar 28 pessoas indefesas. Por que praticara o ato? Por que era a sua natureza. Laura o olha. – Espero que se saia bem no trabalho. − diz o senhor Guedes.
ILUSÃO OU FATO?